Todas as cartas de amor são ridículas, disse Fernando Pessoa. E provavelmente terei ridículas memórias dessa carta de amor. Talvez escape de ser uma criatura ridícula ao escrever essa ridícula carta de amor. Mas o ridículo não me espanta mais faz tempo.
Nos últimos tempos, meu coração que já falhou um dia, se tornou hipertenso. Fiz tantos exames para entender o que fez ele acelerar. E talvez os médicos não consigam descobrir. Talvez a razão de meu fraco coração bater mais rápido seja a razão dessa carta de amor. Uma razão ridícula.
Ridícula porque temos tantos a fazeres. Temos tanto para conquistar. Estamos ocupados tentando sobreviver, vencer, superar, resolver, pagar, viver, não morrer, e pensamos que não temos tempo para nosso ridículo amor, que tem tão pouco para dar certo. E talvez não tenhamos mesmo. Talvez tudo seja realmente mais importante do que um amor ridículo. Talvez todos sempre tenham coisas mais importantes que o amor, e seja essa a razão pela qual todas as cartas de amor são ridículas. As cartas de amor são ridículas, porque o amor é ridículo.
Eu, em tempos remotos, escrevi várias cartas de amor. A maioria não correspondida, destino provável também dessa carta de amor. Mas depois de certo tempo, parei de escrever cartas de amor. Ao invés de um ridículo jovem escritor de cartas de amor, me tornei um respeitado professor que escreve artigos científicos chatos que somente os alunos que dependem de sua aprovação vão ler. Ou alguns amigos mais chegados mais por cortesia profissional do que por prazer verdadeiro.
Perdi a mão para cartas de amor. Mas ultimamente, como você bem sabe, o ridículo tem andado ao meu lado. E talvez algum talento para uma carta de amor ridícula tenha voltado.
Devo dizer ao meu médico, o simpático Doutor Martinelil, que pode haver alguma possível relação entre minha recente hipertensão inexplicável e essa vontade de escrever uma carta de amor. Quem sabe até eu me cure dessa síndrome de um coração que bate mais forte e mais rápido do que deveria.
Mas o fato, minha cara destinatária dessa carta de amor, é que todo o ridículo pelo qual tenho passado não sem algum constrangimento diante dos seus olhos, é porque, de fato, o amor é ridículo. E nesse momento, amando, sou eu uma criatura ridícula, que anda como um hipopótamo em um jardim a destruir as belas flores que a vida em sua riqueza nos concedeu. E sem controle de sua enorme carcaça, vai esse hipopótamo triste a vagar em destruição sem saber como impedir o estrago gerado pelo seu trânsito em local tão inadequado à animais de seu porte, tão pouco habilidosos em seus deslocamentos.
Ah, minha cara. Somos todos hipopótamos andando em jardins. Sempre que andamos, flores morrem.
Porque o amor é isso. É ridículo. Ridículos são os que com tantas coisas importantes para se fazer nessa vida colocam o amor em primeiro lugar. E com tantas coisas para se resolver nessa vida, alguém que cai no ridículo de amar criar problemas tão desnecessários e, quem sabe quando não, de impossível solução.
Ouvimos tanto do amor nas canções, assistimos tanto do amor nos movimentos das danças que nos encantam. Falamos até do amor nas artes que aprontamos. Mas no fundo, corremos do amor. Temos medo dele. Temos medo do ridículo. E temos medo porque o mundo não perdoa os ridículos. Ser ridículo é a denúncia da futilidade da existência. E isso é insuportável aos sacerdotes das fantasias que nos movem adiante como cavalos correndo atrás de coelhos de lata que não passam de um atrativo para fazê-los disputar uma corrida na qual algum apostador vai ganhar e outro vai perder. E o cavalo, pobre anima, continuará a ser um cavalo.
Por fim, querida destinatária, encerro esse conjunto de palavras esdrúxulas lembrando-te de meus sentimentos esdrúxulos por trás de meus comportamentos esdrúxulos. E lhe peço paciência com essa carta de amor ridícula, que só é ridícula porque lhe sobra amor, e o amor é ridículo.