Uma invenção importante da humanidade foi o calendário. Mas como tantas coisas na vida, o calendário – e os calendários – têm seus lados A e B. Nos lados A, a organização imprescindível para tornar o uso do tempo mais eficiente. Nos lados B, a escravização inevitável quando se torna o uso do tempo mais eficiente.
Não sou do tipo Cazuza, sem datas para comemorar. Ao contrário, comemoro muitas datas. Tenho até boa memória para aniversários e datas comemorativas do calendário. Mas confesso que há uma certa seletividade na minha memória. Uma seletividade cujos critérios nem sempre me parecem muito claros. Digamos que os calendários que regem o meu tempo as vezes saem meio às avessas sem que saiba exatamente por quê.
Semana passada, por exemplo, no dia 15 de outubro foi Dia do Professor. O prezado leitor que me acompanha por essa coluna e sabe da minha relação com a educação pode ter esperado em vão alguma crônica dramática ou emotiva destacando a importância do professor e a desgraça que é esse governo para quem atua na educação, cortando verbas e sacaneando diariamente quem atua na área, atacando até mesmo nossos símbolos mais sagrados e de maior orgulho como Paulo Freire. Mas acabou que eu já tinha escrito sobre isso outro dia e a data passou em branco.
No calendário da minha mãe tem o dia 17 de outubro – véspera do dia do médico – que é segundo ela o dia do meu segundo aniversário. Fazer aniversário uma vez por ano já é muito. Mas minha mãe não se esquece desse dia já que vinte anos atrás quando fui fazer uma simples cirurgia de garganta para melhorar minha atuação como cantor quase fui cantar do lado de lá – seja lá onde o lado de lá for.
Uma intercorrência até hoje não muito bem explicada fez meu coração parar durante o procedimento. Após cerca de 35minutos de muitos choques, injeções e massagens cardíacas o danado voltou a bater. Não me lembro bem dos fatos, já que perdi a memória de vários dias próximos ao evento, fato que segundo os médicos é normal.
Digamos que é como um porre ao estilo Basílio Coelho quando você não lembra onde deixou o carro na noite anterior, mas elevado algumas potências. De herança do episódio umas costelas quebradas, queimaduras, alguma fama de imortal. E alguns irritantes esforços de amigos e familiares em tentar dar sentido a algo que não tinha sentido nenhum. Foi apenas mais uma daquelas coisas aleatórias da vida. Não fui “poupado pelo destino” para ser presidente, salvador, ou qualquer outra coisa. Apenas não morri, como, aliás, acontece todos os dias faz quase 44 anos.
As datas são assim, prezado leitor, como os episódios nos quais você quase morre, mas não morre. Ou mesmo aqueles nos quais você morre mesmo. Elas, as datas, assim como morrer ou não morrer, não tem sentido nenhum. Todos os sentidos que possamos perceber somos nós que atribuímos. Resta saber se esses sentidos são apenas ecos do que nos rodeia ou vozes processadas em nosso íntimo.
É por isso que, embora tenha certo respeito pelas datas do calendário oficial e muitas vezes finja que me importo com elas, lá no fundo eu tenho meu próprio calendário com as minhas datas e sempre atento, não somente aos dias nos quais eu quase morri, mas, e principalmente, aos dias nos quais eu quase vivi.
Ah, prezado leitor, quase morrer não foi nada. Difícil mesmo, é quase viver.